BRASIL
Invisíveis da fumaça: comunidades da Amazônia enfrentam níveis extremos de poluição do ar em ano de seca recorde

Análise da InfoAmazonia revela que pequenos vilarejos, comunidades rurais, territórios indígenas e quilombolas registraram índices de poluição do ar muito acima dos limites considerados seguros pela OMS, durante a temporada do fogo de 2024.
Por Jullie Pereira
Em Demarcação, um distrito de Porto Velho, Rondônia, os barqueiros não conseguiam mais atravessar o rio Jiparaná. Os idosos mal podiam respirar, as crianças adoeceram. Era setembro de 2024, auge da temporada de queimadas na Amazônia. O rio, a floresta e as casas desapareceram sob a fumaça. A comunidade de 843 ribeirinhos se tornou invisível.
“Rapaz, essa época foi bem apertada mesmo, bem difícil. Com o fumaceiro, a gente não conseguia ver nada. Os idosos tentaram ficar só dentro de casa, sem sair. As crianças ficaram sem escola. Todo canto, para onde olhava, tinha fumaça”, disse o chefe do povoado, Francisco Urielson, conhecido como “Mandiru”.
Esta é a primeira reportagem da série “Invisíveis da fumaça”, que investiga a poluição do ar atribuível às queimadas históricas, que ocorreram entre julho e dezembro de 2024, em pequenos povoados e comunidades da Amazônia. A produção é uma parceria entre InfoAmazonia, Agência Carta Amazônia, O Vocativo, Tapajós de Fatoe Voz da Terra.
Apesar de a poluição do ar durante a temporada de queimadas ser um problema cada vez mais conhecido na Amazônia, poucas localidades em zonas rurais possuem estações fixas de monitoramento da qualidade do ar. O que existem são sensores em algumas cidades e os índices medidos por esses equipamentos têm sido amplamente noticiados nos últimos anos. No entanto, comunidades menores, que não possuem esse tipo de tecnologia, ficam de fora das discussões e acabam invisibilizadas. Isso ocorre porque os equipamentos necessitam de energia, internet estável e uma pessoa para verificar, frequentemente, se estão em bom funcionamento.
Para analisar a poluição do ar nas diferentes localidades amazônidas, o especial olhou para informações globais de concentração de material particulado fino (PM2.5, do inglês “particulate matter”) um conjunto de poluentes atmosféricos com menos de 2,5 micrômetros de diâmetro, que pode ser transportado pelo vento por milhares de quilômetros. Com base nos dados do serviço de monitoramento da atmosfera Copernicus (CAMS), do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas (ECMWF), a análise da InfoAmazonia processou as diversas estimativas diárias para chegar na concentração média de PM 2.5 para toda a Amazônia Legal em diferentes períodos de 2024.
Para identificar quais foram as regiões “invisíveis” mais afetadas, incluindo zonas rurais, favelas e comunidades urbanas, a série de reportagens cruzou os dados de material particulado com os dos setores censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essas áreas, delimitadas para a realização do Censo Demográfico, representam a menor divisão territorial disponível no país, podendo ser menores que os bairros. O índice de poluição também foi analisado dentro de territórios indígenas e quilombolas.
Como analisamos a poluição das queimadas na Amazônia
Cruzamos os dados de PM2.5 do CAMS, um sistema europeu de monitoramento da qualidade do ar, com as regiões “invisíveis” mais afetadas pela poluição, como bairros, favelas e comunidades urbanas, com base nos setores censitários do IBGE.
Confira as bases de dados e mais detalhes nesta página.
A asfixia invisível da Amazônia
Ao ser inalado, o PM2.5 penetra na corrente sanguínea. O limite diário considerado seguro pela Organização Mundial da Saúde (OMS) é atualmente de 15 µg/m³. No entanto, no distrito de Demarcação, a média entre julho e dezembro foi de 55,4 µg/m³, um índice 269% maior do que o recomendado pelo órgão internacional. A comunidade teve a média mais alta da Amazônia na temporada.
Santo Antônio do Matupi, distrito da cidade de Manicoré, no Amazonas, foi a décima localidade mais afetada entre julho e dezembro, com média de47,5 µg/m³ por mês – índice mais de 200% acima do recomendado pela OMS.
Mapa 01 – média da temporada na Amazônia
https://infoamazonia.org/?post_type=map&p=200339&preview=true
Algumas das localidades mais impactadas estão em áreas florestais, sem habitação, enquanto outras se localizam em vilas e comunidades ribeirinhas.
Nossa análise mostra que moradores de zonas rurais, longe dos centros urbanos e das grandes capitais, respiraram os piores níveis de toxicidade da fumaça. Eles estão em municípios da fronteira entre o Amazonas, Rondônia e Mato Grosso. Os dez setores censitários mais impactados estão nas cidades de Porto Velho (RO), Candeias do Jamari (RO), Itapuã do Oeste (RO), Apuí (AM), Borba (AM), Cujubim (RO), Novo Aripuanã (AM), Lábrea (AM), Colniza (MT) e Manicoré (AM).
Dataviz – distritos mais afetados
https://public.flourish.studio/visualisation/21923202/
‘Eu acordava tentando respirar’
Se a média de julho a dezembro já foi alta, ao observar apenas os meses de pico das queimadas, agosto e setembro, os índices são ainda maiores.
A pior média de Demarcação foi em agosto, de 151 µg/m³, um valor 906% superior ao limite considerado seguro pela OMS. A média de setembro baixou um pouco, para 107 µg/m³, mas ainda assim muito acima do valor recomendado (613%).
Em Demarcação, 80% das pessoas se declaram pretas e pardas, de acordo com os dados do Censo de 2022, do IBGE. Eles trabalham principalmente com a pesca e a agricultura.
José de Souza, de 79 anos, agricultor e morador do povoado, contou que sentiu falta de ar, dor no peito, garganta inflamada e ardência nos olhos. “O povo acha que a gente é um bicho, mas nós somos seres humanos. A gente sofre por causa de tanta derrubada [de árvores] que o pessoal faz”.
Para chegar a Demarcação, são necessárias 12 horas de viagem de barco, pois não há estradas nem aeroporto na região. Por três meses foi impossível fazer o trajeto pelo rio, como contou o chefe do distrito, Urielson Lacerda. A luz do dia não era suficiente para enxergar através da fumaça, que impedia os barqueiros de seguir na direção certa.
A educação de crianças e adolescentes também foi afetada. No ensino médio, os estudantes do vilarejo precisam se deslocar até a comunidade de Calama, a 6 km de distância. Com a impossibilidade de viajar de barco, ficaram três meses sem aula.
Além disso, quem estava convivendo com a fumaça não conseguiu ajuda médica. Após semanas sentindo falta de ar, a aposentada Maria Nilza, de 60 anos, moradora de Demarcação, quis ir a Porto Velho buscar atendimento em um hospital, mas desistiu por não conseguir transporte.
“Eu acordava tentando respirar, mas só tinha o fumaceiro. Não tinha para onde ir. Não tinha médico nenhum. Como a gente iria para Porto Velho? Não tinha como”, diz.
De julho a dezembro, o povoado passou 105 dias com o ar poluído. A pesquisadora Sonaira Silva, do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA), da Universidade Federal do Acre (UFAC), foi consultora científica para esta reportagem. Ela estuda a dinâmica do fogo e da fumaça e integra a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Para ela, a quantidade de dias com altos níveis de fuligem é o mais surpreendente.
“O fogo é local, mas, quando é muito local, logo se dissipa, porque você queima o material orgânico que tem ali e, daqui a pouco, não há mais o que queimar. O que vemos é a persistência da fumaça e a persistência também desse fogo. Tudo que estamos vendo mostra que não temos como lidar com esse problema sem pensar nele numa escala regional”, explicou.
Dataviz imagem de satélite – fogo sobre imagem de satélite do distrito Demarcação
A fronteira da fumaça
Agosto e setembro geralmente são o auge da temporada de queimadas na Amazônia. Em 2024, não foi diferente.
As médias de material particulado nos dois meses foram maiores do que nos outros meses da temporada – julho, outubro, novembro e dezembro. Em julho, nenhum setor censitário da Amazônia estava com índice acima de 100 µg/m³. Em agosto, 57 setores ultrapassavam esse índice. Em setembro, 486. Novembro e dezembro voltaram a ter nenhuma área acima de 100 µg/m³.
mapa 02 – GRID com média PM 2.5 mês a mês na Amazônia
Por cinco dos seis meses da temporada de queimadas, com exceção de novembro, a fumaça se concentrou na fronteira entre Amazonas, Rondônia e Mato Grosso. Nessa região, o setor agropecuário avança sobre áreas florestais, expandindo fazendas de gado, soja e milho ao longo de rios e estradas.
A cientista Ane Alencar, diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa da Amazônia (IPAM), explica que o fogo tem uma capacidade maior de se alastrar por áreas como essas, onde já existe algum grau de desmatamento, com restos de árvores e folhas secas.
“Essa temporada de 2024 foi muito fora da curva. Ela foi fora da curva porque a imagem estava muito inflamável. O potencial de propagação do fogo foi muito maior, com florestas queimando por dias. Não tem como ser diferente: onde há desmatamento, há mais fogo”, diz Ane Alencar.
Nessa fronteira, com a área dividida entre o Amazonas e Rondônia, está a Terra Indígena (TI) Kaxarari, localizada em Lábrea, no Amazonas. A aldeia Buriti faz parte do território, junto com outras dez aldeias: Marmelinho, Barrinha, Nova, Txakubi, Central, Paxiúba, Pedreira, Kawapu e Extrema.
Estrada no município de Lábrea, região em que está a aldeia Buriti, comunidade indígena mais afetada pela fumaça na temporada de queimadas de 2024. Foto: Nilmar Lage/ Greenpeace
Mas o material tóxico se espalhou com mais intensidade na Buriti, que foi a comunidade indígena mais afetada pela fumaça na temporada, segundo a análise da InfoAmazonia. Buriti enfrentou médias mensais de material particulado fino que começaram em 54,2 µg/m³, em julho, e chegaram a 93 µg/m³, em agosto.
Em setembro, quando ativistas e organizações social criaram campanhas para denunciar a fumaça nos centros urbanos da Amazônia, Buriti atingiu uma média mensal de 100 µg/m³ de material particulado fino. Foram 96 dias com poluição acima do recomendado pela OMS entre julho e outubro. Na época, chegou a registrar uma média diária de 264 µg/m³ em 31 de agosto— 1.660% acima do considerado seguro.
A poluição só começou a baixar na comunidade Buriti a partir de novembro, quando caiu para 10 µg/m³, e para 7 µg/m³, em dezembro.
A TI Kaxarari registrou 1.287 focos de calor de julho a dezembro de 2024, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), sendo 7% (94) dentro da terra indígena e os outros 93% nos 10 km ao redor do território. Nesse raio perto do limite, há 555 processos de certificação de imóveis rurais aguardando análise para validação.
Mapa 03 – TI e focos
https://infoamazonia.org/?post_type=map&p=200349&preview=true
“Até cinco anos atrás, era muito bom aqui, mas hoje os fazendeiros passam com seus aviões jogando agrotóxicos, que acabam chegando na nossa aldeia. Nossas castanhas estão mais secas, e o nosso buriti não dá mais em tantas árvores como antes”, conta o cacique Manoel Kaxarari, da comunidade Buriti.
Maiza Soares, do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vida e Culturas Amazônicas (GEP Cultura), da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), é uma pesquisadora do povo Kaxarari. Ela esteve na comunidade em outubro do ano passado.
“Eles estão sendo comprimidos pelas grandes fazendas. Quando você olha ao redor, chegando pela estrada, vê, de um lado, a mata virgem [da terra indígena] e, do outro, fazendas com gado”, explica.
A vice-cacica Raimunda Kaxarari, da Buriti, conta que ela, seu marido e seu pai ficaram doentes por causa da fumaça. Enjoo e dor de cabeça foram alguns dos sintomas. Nos piores meses, o caos foi geral. A região de Lábrea registrou 39.2ºC, quando a temperatura esperada era de 32ºC. A comunidade não tem energia elétrica. Sem o vento e o ar limpo da floresta, os dias e as noites foram ainda mais difíceis.
“Foi bastante fumaça, uma fumaça abafada. A gente não respirava o ar, o oxigênio, só a fumaça. Não foi só aqui. Em todas as nossas aldeias, foi um verão difícil”, contou.
A comunidade não possui posto de saúde e depende do Distrito Sanitário Indígena (DSEI) do Alto Rio Purus, na fronteira do Amazonas com o Acre, para atendimento médico. Esse DSEI, vinculado à Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), atende 146 aldeias de sete povos indígenas da região. Em 2024, recebeu 1,7% do orçamento total destinado aos 34 distritos do país, equivalente a R$ 17,4 milhões, de um total de pouco mais de R$ 1 bilhão, segundo a Sesai.
“É complicado fazer os atendimentos por falta de estrutura. Os problemas que ficam depois são ainda mais preocupantes. São muitas doenças que comprometem os idosos e as crianças. As instituições, os municípios, os estados, as representações do Governo Federal não têm estrutura para atender todas as demandas”, afirmou Ninawa Huni Kui, coordenador do DSEI.
Enquanto em julho, agosto, setembro, outubro e dezembro a maioria da fumaça estava concentrada na fronteira onde está a TI, em novembro há uma mudança de padrão geográfico. Neste mês, a maior parte do material particulado fino foi detectada no centro-sul do Pará. As zonas rurais de Santarém se destacaram, com as três piores médias mensais de material particulado, variando de 46 µg/m³ a 49 µg/m³.
Felismina Coutinho, de 65 anos, moradora de Santarém, conta que, na época, ficou doente, com tosse, dor de garganta, coriza e mal-estar, mas preferiu não ir ao hospital: “Estava lotado de gente com o mesmo problema”.
Ela relata que sua rotina mudou completamente. Decidiu se trancar em casa e usar máscara mesmo dentro dos cômodos. “Era noite e dia com fumaça. A gente limpava as coisas de manhã, e, quando chegava meio-dia, já estava tudo cinza de novo, com um pó preto que caía sobre as nossas coisas, nas louças, nos móveis, na roupa que a gente botava para secar. Foi cruel”.
Esta reportagem faz parte da Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais da Amazônia. Foi produzida na Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com apoio do Instituto Serrapilheira.
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Texto: Jullie Pereira
Ilustrações: Utópika Estúdio
Análise de dados: Felipe Barros
Consultora científica: Sonaira Silva
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação Rede Cidadã InfoAmazonia: Helena Bertho
Direção editorial: Juliana Mori
