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TÁ ME DEVENDO DUZENTAS PILA

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Cara! É preciso ter muita intimidade ou muita coragem para olhar nos olhos – bem de pertinho – e chamar alguém de C* de Gambá ou de Privada Cheia.

Certos apelidos não ajudam ninguém a vencer na vida e não adianta chamar o SEBRAE. Atrapalham! Mas certas semelhanças fazem o apelido grudar. Richarlison, o Pombo, da Seleção brasileira, tem ou não um jeito de pombo? Tem!

Nanô e Felão limpam peixes e lavam bucho de vaca. Depois, vendem nas feiras às quartas e aos sábados. Cumprem tudo que a vigilância sanitária exige: vão de quepe, jaleco, calça e botas brancas para a banca que tocam como sócios. Sim! São um fracasso no quesito higiene pessoal e o pior: não se percebem fedorentos. Só terceiros sentem a catinga impregnada e impregnante a alcançar as narinas indefesas, mesmo que o vento esteja ajudando a dissipar. Portanto, os apelidos depreciativos seriam desmoralizantes, verdadeira maldição, mas ambos são lesos o suficiente e não estão nem aí para a pecha ruim que carregam.

O cérebro de ambos, cúmplice do fedor, os acostumou, adaptando-os e neutralizando para ambos a inhaca que suas vítimas respiram a contragosto. Isso só não espanta a boa freguesia porque na banca onde vendem os peixes e o bucho há um lençol de fedor invisível a camuflar o mal cheiro dos dois, lençol esse emprestado pelos peixes e pelo bucho que, mesmo limpinhos, fedem pra caramba, mas cada coisa no seu lugar, ou seja, os peixes e o bucho, até podem exalar cheiro forte, mas dois marmanjos… Não, não e não! Daí – bem feito! – os apelidos punitivos em ambos: C* de Gambá e Privada Cheia. Portanto, não é de graça o escroto apelido que cada um carrega.
Nanô e Felão, sem os incisivos centrais e laterais da arcada superior, banguelas mesmo, foram brindados com a generosidade de um nobre vereador: uma dentadura para cada. Por pura coincidência, os moldes de ambos mostraram as mesmas medidas. Os dois têm arcadas semelhantes.
– Nem precisava medir a arcada dos dois, observou o protético.

Mas para a angústia de Felão, ao receberem suas dentaduras, somente a de Nanô se assentou confortavelmente na gengiva. A de Felão não encaixava direito, pressionava e machucava.
Ficava, então, o implicante Nanô a fazer inveja ao Felão, a dar gargalhadas com a boca escancarada, zombando do Felão porque ainda ria com a mão na boca, escondendo o sininho da garganta e os caninos destacados, “essas presas de porcão,” como observavam alguns gaiatos.
Em pleno sábado de festivo, Nanô se viu impedido de estrear e mostrar o seu sorriso branquelo, de mandioca descascada. Com gripe e muito catarro, mais acamado que de pé, ficou impedido de ir à festa.

Alguém bateu na sua porta. Era o Felão. Conversa vai, conversa vem, Nanô lhe perguntou:
– Você vai pra festa hoje à noite?
– Vou e não vou!
– Como assim?
– Com dentadura, vou! Sem dentadura, não!
– Então… Não vai! O protético não entregou a tua dentadura, ainda vai ajustá-la…
– Mas nisso podemos dar um jeito…
– Como? Tira esse podemos. Eu, como uma das partes que compõe o teu podemos, tô fora.
– Simples! Você me empresta a tua dentadura e eu vou!
Nanô, todo dono de si, botou o dedo indicador na fronte e deixou sair pela boca uma argumentação toda fundamentada… e até ficou bacana:
– Cê tá maaluco?! Além de não encaixar, pois a outra que era aparentemente igual não encaixou… Se vc quiser mesmo ir para a festa, que vá banguela. Querer se exibir com os meus dentes novos?! Nem pensar! Você sabe: mulher, revólver e agora eu incluo dentadura, ninguém empresta. Mulher, porque se aceitar, fica desmoralizada e ainda desmoraliza quem se meter a emprestar a sua. O mundo mudou, só pra você se situar, a filha do Nicanor que estava sumida lá pra Brasília, chegou. Toda tatuada, com argola no nariz, bem estudada, cheia de respostas na ponta da língua.

A coitada da irmã mais nova que aqui ficou, caiu na besteira de dizer que o sangue de Jesus tem poder e ela respondeu na bucha: “Deixe Jesus cuidar dos que se foram, nós mulheres, temos ço… ço… sororidade” – que eu nem sei o que diabo é – e completou dizendo que “a Lei Maria da Penha foi feita para nos ajudar.” Por isso, é melhor eu parar com essa história de emprestar mulher, não tá mais aqui quem falou. Já o revólver, porque causa briga e arrasta quem o emprestou para a delegacia; quanto a dentadura, é uma coisa nojenta para se emprestar. Já não basta nos azucrinarem com os nossos belos apelidos?

– Moço! Tua dentadura serve em mim. A minha era a que tinha defeito. Se apresentar alguma folga ou aperto, dá pra eu aguentar. É só por uma noite!
Sabendo que Nanô era muquirana, muito ganancioso, Felão jogou suas cartas:
– Macho! Não vai ser de graça. Alugo por essa noite. Às seis da manhã, devolvo. Acho que trinta pila são suficientes para pagar o aluguel e causar duas alegrias.
Nanô, botou a mão no queixo, acocorou-se, riscou o chão e falou:
– Amigão, vou fazer isso porque é pra você, mas pelo meu sacrifício vou lhe cobrar cinquenta pila!
– Combinado! Às oito da noite eu passo aqui para pegar a dentadura e deixo o dinheiro. Por segurança, quero testar. Vamos lá pra pia, você quebra muitos ossos de frango nos dentes e ela pode estar afolozada.

Entraram e Nanô, com o indicador e o polegar, sacou a dentadura, enchaguou-a e a repassou para um Felão contente. Esse a encaixou entre os caninos e falou:
– Ficou tão agasalhada que eu topo esticar o prazo do aluguel até a minha chegar.
-Ta maluco? Só por essa noite, até as seis da manhã.
E assim, combinados, às oito da noite, Felão trouxe o dinheiro e levou a dentadura… Feliz da vida! Na festa, fazia questão de ser o bestão, de mastigar com a boca bem cheia e aberta, todas as comidas gostosas que iam servindo. Estava todo inxerido. Era o cara!

Nanô, no outro dia, bem cedo, não esperou Felão trazer a dentadura. Foi até a sua casa, perto dali, abriu a porta mal tramelada, entrou e encontrou Felão bêbado, vomitado, coberto de moscas, roncando com a boca aberta e a sua dentadura, folgada, a tremular a cada ronco de apnéia. A cunha de borracha que improvisara para um pequeno ajuste, antes de ir para a festa, fora engolida com os bons quitutes.

Num gesto de ciúme, Nanô, meteu os dedos na boca de Felão e sacou a dentadura. Ele nem se mexeu. Nanô, por seu lado, não quis nem enchaguá-la. Ajustou-a na boca, ficou imóvel e, por alguns segundos, tomado por certa reflexão, começou a pabular e especular, voltado para o amigo bêbado, desacordado:
– Ninguém tem um paladar tão fino como o meu, ó…. A dentadura tá me contando tudo. Se você tivesse o hábito de escovar os dentes, ía dar mais trabalho. Hum! Que jantar chic! Frango caipira, feijoada e até maniçoba! Doce de leite!? Ih! Tô sentindo um rançozinho, deve ser dos pequis e da fermentação, pois você demorou a vomitar, né? Só bebeu cerveja? Não soube aproveitar, vomitou quase tudo. Pera aí, que porra é essa? Meteu os dedos na boca, arrancou a dentadura, olhou-a atentamente e continuou sua fala com o bêbado em sono profundo: Que raio de namoro nojento foi esse que você arrumou por lá?A prova tá aqui, ó! Enroscado, bem enroscado na minha dentadura, porra!… Isso aqui é um pentelho seu filho da puta! Agora!… Tá me devendo duzentas pila! Nanô, roncando estava, roncando continuou.

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JOSÉ EPIFANIO PARENTE AGUIAR

Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.

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