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Artigo

A FALTA QUE ELA FAZ

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Era um casarão de adobe com piso de cimento queimado e o quintal tinha dimensões latifundiárias. Nele tinha pé de manga, de mamão, de café, de amora, de abacate, uma latada de maracujá e uma clareira onde a cada ano se cultivava uma bonita horta.

Ninguém sabe de qual árvore a pipira caiu. O ninho estava lá nas alturas. Alguém disse que escutou um plaft! Será? Pequenina como era não faria barulho com a queda. Se estava a correr saltitante de um lado para outro, então não sabemos de onde ela despencou. Ademais, só contratando um ornitólogo especializado, com tratado sobre o período de choco de pipiras, para nos dizer em qual tipo de árvore as pipiras gostam de fazer ninho.

Ela atende por Carlinha porque esse foi o nome com o qual dona Gugu a batizou. Sim! Houve um ritual: Dona Gugu rezou um pai nosso, duas ave-Marias e sentenciou: “Dou-te por batizada em nome de Jesus. Doravante, aqueles que usufruírem do teu convívio, chamar-te-ão de Carlinha.” Não bastando disse mais: “Vou cuidar desta bichinha até ficar bem empenada, voar, ganhar os céus e partir. Não vou deixá-la morrer à míngua, virar banquete de gato, ser devorada por uma mucura ou ser estraçalhada pelo bico afiado de um cruel gavião. Se alguém quiser saber se é macho ou fêmea, que vá se catar. Não vamos perder tempo com sexador nissei, daqueles que passam o dia enclausurado na granja esgravatando o fiofó de pinto”.

Dona Gugu, agora na condição de mãe da Carlinha, é septuagenária, solteira, tem boa escolaridade, é aposentada, dona convicta do próprio nariz e até gostaria de ter dividido uma vida a dois com um macho de boa estirpe, mas a legião de Zé Ruelas que a cortejou era desqualificada e foi toda reprovada. Hoje, Dona Gugu pergunta para os paredões de seu casarão se não foi por demais rigorosa na seleção, ou melhor, nas tantas exclusões que fez.

A pipira extraviada recebeu de imediato todos os cuidados necessários para sobreviver: Gaiola no alto da parede, inacessível a qualquer predador – exceto os voadores – e dieta de papa de tapioca, soprada e resfriada para não queimar o papo, mamão e banana raspados com uma colher, água limpa pingada no bico com conta-gotas e muito, muito carinho. Tudo dosado com delicado controle para não empanturrar a bichinha, a essa altura, adotada sem burocracia.

Carlinha, não identificada no começo, porque só tinha plumas, ganhou penas e tomou feição de pipira porque pipira era. Mansinha, passou a frequentar o colo, o dedo, o ombro e a cabeça da mãe previdente, sempre saltitante, já se arriscando em vôos curtos. Afoita, por um triz não se afogou no caldo de um gorduroso cozido, de sorte frio, mas ficou-lhe uma sequela que durou por um bom tempo: foram-se as penas do rabo e algumas do dorso, arrepiadas, não mais se acomodaram. Depois de um longo período arrepiada e sura as penas defeituosas caíram e nasceram-lhe outras nos fundilhos, dando-lhe um novo e vistoso rabo. Sim! Voltou a voar, mas sua habilidade de antes se foi. Ficou com o voo desengonçado, mais para anu-branco que para pipira. Mas isso lhe deu mais graça.

A gaiola, já desnecessária, foi desativada e o seu cantinho seguro e aconchegante foi montado e decorado com bonequinhas e alguns periquitos de plásticos para lhe fazer companhia. Esse cenário foi produzido ao lado da cabeceira da cama de Dona Gugu. A alimentação era sempre servida na varanda que dá para o quintal e as sujeirinhas expelidas à noite, cuidadosamente removidas ao amanhecer. Um cachorro vira-lata foi também adotado só para manter à distância os traiçoeiros gatos que rondavam a casa.

Nada nesse mundo, a essa altura do enlevo, faria dona Gugu retomar o projeto inicial de devolver a pipira para a vida selvagem, mesmo que ela tivesse condições atléticas e voltasse a voar bonito. “Se esta bichinha um dia sumir, meu Deus, sei que posso morrer. Vou ser consumida pela angústia e pela incerteza, sem saber sequer se ela está viva ou com sede e fome, indefesa, procurando por mim. Prefiro passar pela provação de vê-la morrer a ter que conviver com o vazio de sua ausência”.
Estas palavras, dona Gugu, mal disfarçando a emoção, proferiu-as para a amiga mais próxima, sua vizinha Cleonice, com quem conversava horas a fio, de pipira no colo, à tardinha. “Que é isso, mulher? A pipira é só uma pipira!” Observou-lhe a vizinha com seu senso de realismo.

Um belo dia…não! Um triste dia, a dona Gugu convidou a amiga Cleonice para apreciarem umas roseiras em seu jardim. Não perceberam ambas que a pequetita as seguia quase roçando os seus calcanhares, toda saltitante. Pronto! Um passo atrás da vizinha Cleonice transformou-se em tragédia: Uma simples pisadela revelou-se fatal. De nada adiantou o sumo de mastruz pingado bico adentro. Também não adiantou a água fresca passada sobre a cabecinha fraturada. Seria grosseiro dizer que ela morreu. Não! Ela feneceu.

Virou uma estrelinha no céu. Dona Gugu, depois de prantear-se copiosamente no ombro da amiga desastrada, outra, na oportunidade, inconsolável pelo transtorno que causara, recompôs-se e organizou um funeral condigno, lá no fundo do quintal para sua queridinha.

Findada a fase de autômata sedada que suportou firme o velório do ente querido do começo ao fim, com força suficiente para confeccionar, a partir de uma caixa de sapatos, a urna funerária e enterrar a bichinha, estranhamente dona Gugu se isolou, faz feira sozinha, coze, come, dorme, e sai de casa só para fazer o estritamente necessário, como ir ao banco receber a aposentadoria.

Cleonice, a amiga inseparável de antes, nunca mais foi procurada. Constrangida e embaraçada, também não a procurou mais. Vamos entender: Aquela não era uma pipira qualquer. Era a Carlinha, filha amada de dona Gugu que a natureza lhe dera em forma de pipira, humanizada desde o instante em que a ela se apegou com uma intensidade quase insana. Um santo remédio para enxotar a sua solidão.

Dona Gugu, quando com a pipira, cochichava e sabia que a mesma lhe entendia. A pipira representava para ela a remodelação do incômodo estado civil. Antes solteira, depois, ainda solteira, mas mãe sem ser mãe solteira, mãe! A súbita passagem de Carlinha significou o amargo regresso, para dona Gugu, duro de tolerar, à condição anterior, pois o exercício pleno de maternidade foi bruscamente interrompido. A sensação paradoxal de que ser mãe é padecer no paraíso, acabou. Foi-se o paraíso e restou o padecimento. Por que ao longo da vida, em tempo hábil, quando ovulava, não pôde realizar a maior aspiração que a cultura da avó, a da mãe e a da maioria das mulheres impõe: Ter que ter filhos? É revoltante! … Não poder ser mãe nem de um passarinho? De uma pipirinha que estava adocicando a sua vida!? Vá lá! Fosse um cachorrinho e ninguém estranharia o impacto que dona Gugu sofreu, vez que os cachorrinhos estão cada vez mais humanizados. Entretanto, não há muita diferença entre se apegar a um cachorrinho ou a uma pipira, pois ambos são bichinhos que Papai do céu nos enviou. Tudo bem! Carlinha era diferente. Mas o normal hoje em dia é ser diferente, com o perdão pelo surrado bordão.

O mundo muda e os valores também. Que tal deixarmos a dona Gugu em paz? Não mais bisbilhotar a sua vida? Apenas deixar um conselho: Se ela voltar a se apegar a algum bípede, oxalá seja um papagaio. O tal do louro, além de não deixar o dono falando sozinho, jamais cometerá a tolice de se deixar pisar por uma Cleonice distraída. Da tábua, papagaio que não é otário, só sai de carona no dedo.


JOSÉ EPIFANIO PARENTE AGUIAR

Sou um Baby Boomer, portanto um véi esquisito para as gerações X, Y, Z e um monstrengo para a geração Alfa.

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